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  1. Quando cursei o Ensino Fundamental e o Ensino Médio pouco ou quase nada se falou sobre a África. Apesar de terem ocorrido mudanças nas matrizes curriculares, como a tentativa de incluir aspectos históricos, sociais, econômicos, políticos e culturais do continente africano, ainda existe uma certa resistência e preconceito por parte de escolas e professores em fazer uma abordagem mais profunda. Muitas vezes, inclusive, pela falta de preparo. Entretanto, os vestibulares mais disputados do estado de São Paulo estão apostando na literatura africana e, consequentemente, estimulando as reflexões. É o caso da Unicamp, que colocou em sua lista de livros Terra Sonâmbula, do escritor moçambicano Mia Couto, e da Fuvest que inseriu Mayombe, do angolano Pepetela. 
    Nesta publicação, analisaremos Mayombe. Comprei muito despretensiosamente o livro e afirmo com convicção que foi um dos melhores que li este ano. Não havia tido contato com a literatura africana até então, e justamente por isso posso dizer que comecei muito bem, foi um tiro certeiro!

    Aspecto histórico
    Fonte: Reticência Jornalística
    Pepetela é o nome de Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos, que passou muitos anos de sua vida dedicando-se à luta pela independência de Angola. Foram treze anos de guerra sangrenta para livrar-se do domínio de Portugal, que só veio a ocorrer em 1975. Pepetela filiou-se ao Movimento Popular de Libertação de Angola, o MPLA, uma organização totalmente anticolonialista e com tendência marxista. O objetivo do MPLA não era apenas o de libertar Angola, mas também promover uma revolução socialista no país - importante ressaltar que tanto a elaboração da obra quanto a independência de Angola tiveram como cenário a Guerra Fria com sua ordem bipolar. Mayombe foi escrito em 1970, durante o período de guerrilha do MPLA, e publicado em 1980, quando o movimento assumiu o governo do país. O título é uma referência à floresta tropical angolana, localizada na província de Cabinda.
    Embora a história comece com um grupo de combatentes numa operação de guerra, o enredo do livro não está focado no conflito armado, e sim na vida dos guerrilheiros do MPLA, evidenciando suas origens, convicções, fraquezas e dramas pessoais. Todos os nomes dos personagens que aparecem em Mayombe (bem sugestivos, por sinal) são, na verdade, nomes de guerra escolhidos pelos membros do movimento e que representam a condição de cada combatente, como Sem Medo, Teoria, Lutamos, Verdade, Milagre, Mundo Novo, Ingratidão e, claro, Pepetela.
    Um dos aspectos mais interessantes da obra é a associação das questões individuais de cada personagem às questões históricas de Angola. A famosa "Partilha da África" foi um episódio horroroso da nossa História, cuja finalidade era disciplinar a repartição amigável do continente africano e evitar uma guerra entre as potências imperialistas no final do século XIX. Apesar de toda a resistência africana, da intervenção militar e territorial e dos conflitos marcados fortemente pela violência desmedida, a divisão das fronteiras do continente estabelecidas pelos países desenvolvidos ignoraram as diferenças étnicas e culturais entre os povos nativos. Pepetela destaca essas diferenças e as rivalidades tribais dentro do MPLA, que é um grupo muito heterogêneo, o que nos faz concluir que além de combater os portugueses, o MPLA também precisava derrubar as fronteiras tribais em nome da unidade nacional. E qual foi o resultado? Logo após o processo de descolonização, quando Angola tornou-se independente, grupos de luta armada se envolveram numa longa guerra civil que durou, com algumas tréguas, até 2002 e que acarretou na morte de 500 mil pessoas. Ou seja, uma vez que o inimigo comum e externo foi eliminado, o conflito tornou-se puramente interno e étnico, tornando-se mais um capítulo trágico da história da África.

    A construção dos personagens
    O processo de humanização dos personagens que Pepetela constrói ao longo da obra é notável! Falo em humanização por conta do modo como a complexidade de cada personagem é explorada, como as personalidades vão se revelando e, sobretudo, porque o autor não apresenta os combatentes como "heróis do povo"; são indivíduos que carregam conflitos subjetivos específicos e fardos existenciais. Como dito anteriormente, os guerrilheiros do MPLA constituem um grupo bem diverso, formado tanto por camponeses quanto por letrados na Europa com as mais diversas correntes de pensamento da esquerda. Convém destacar a língua portuguesa como elemento de unificação do grupo, tendo em vista as origens distintas de cada um.
    Elenquei os personagens mais marcantes, aqueles que merecem um olhar bem atento e cuidadoso:
    Teoria é um combatente que, como o próprio nome diz, é o professor da turma. Sente-se inferior a todo momento por ser mestiço. O peso que carrega pela cor da pele está ligado à autoaceitação, uma vez que seus próprios amigos não dão importância para este fato. A forma como se apresenta não deixa dúvidas: "Nasci na Gabela, na terra do café. Da terra recebi a cor escura de café, vinda da mãe, misturada ao branco defunto do meu pai, comerciante português. Trago em mim o inconciliável e é este o meu motor. Num Universo de sim ou não, branco ou negro, eu represento o talvez. Talvez é não para quem quer ouvir sim e significa sim para quem espera ouvir não. A culpa será minha se os homens exigem a pureza e recusam as combinações? Sou eu que devo tornar-me em sim ou em não? Ou são os homens que devem aceitar o talvez? Face a este problema capital, as pessoas dividem-se aos meus olhos em dois grupos: os maniqueístas e os outros. É bom esclarecer que raros são os outros, o Mundo é geralmente maniqueísta".
    Sem Medo é, a meu ver, o personagem mais apaixonante do livro e que deve ter exigido muito estudo para a sua construção. Um comandante extremamente ético, líder, inspirador e pé no chão. Sua visão política não é a de um revolucionário ingênuo. Tem consciência dos percalços para a consolidação da independência e da revolução socialista e as dúvidas acerca desta concretização não o impedem de lutar mesmo sabendo que, caso a revolução ocorra em sua totalidade, não estará vivo para presenciá-la. É uma espécie de pai para o Comissário, que está em processo de amadurecimento afetivo e sofre com esta metamorfose. A frase que considero mais profunda na obra é dita por Sem Medo: "Queremos transformar o mundo e somos incapazes de nos transformar a nós próprios. Queremos ser livres, fazer a nossa vontade, e a todo momento arranjamos desculpas para reprimir nossos desejos. É o pior é que nos convencemos com as nossas próprias desculpas, deixamos de ser lúcidos. Só covardia. É medo de nos enfrentarmos, é um medo que nos ficou do tempo em que temíamos a Deus, ou o pai ou o professor, é sempre o mesmo agente repressivo. Somos uns alienados. O escravo era totalmente alienado. Nós somos piores, porque nos alienamos a nós próprios. Há correntes que já se quebraram mas continuamos a transportá-las conosco, por medo de as deitarmos fora e depois nos sentirmos nus".
    Ondina, por sua vez, é a única personagem mulher em Mayombe. É instruída, livre afetiva e sexualmente e não ignora seus desejos. Daí resultam seus problemas com o Comissário, com o MPLA e seus envolvimentos com outros personagens. Ondina é autêntica e representa a liberdade feminina, sem idealizações.
    Em certa medida, a própria floresta Mayombe é personificada e vista como mãe dos combatentes. Reflete o que eles vivem e se apresenta como um espaço de luta e solidão, mas que acolhe a todos. Ela é um elemento importante no enredo, que ganha vida própria e se torna protagonista. Pepetela idealiza o Mayombe como a grande referência e símbolo de Angola e seu povo. Talvez seja por isso que são os elementos naturais que marcam a ação e a passagem do tempo, e não o tic-tac mecânico.

    Concluindo
    Mayombe é um romance político, uma história de guerra que mescla acontecimentos e personagens reais com elementos ficcionais. Com uma estrutura narrativa em terceira pessoa e relatos em primeira pessoa, esta obra de influência marxista e socialista (porém longe de ser uma cartilha de doutrinação) envolve a luta pela independência de Angola e a pluralidade de ideias sobre a vida com grande profundidade filosófica. O mérito de Pepetela é que, através de uma escrita poética maravilhosa, ele parte de um contexto histórico local e atinge questões universais, independentemente das épocas e das culturas, explorando as consciências individuais e coletivas simultaneamente.

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