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  1. Stoner: simplicidade, sensibilidade e impassibilidade

    terça-feira, 19 de julho de 2016

    Recentemente, o canal Ler Antes de Morrer (que eu super recomendo) fez um sorteio de kits de livros e fui uma das ganhadoras. Confesso que não via a hora que os meus livros chegassem para começar a leitura de Stoner, de John Williams. Já tinha lido muitos comentários sobre a profundidade da obra, e eu precisava saber o que Stoner tinha de especial.
    Fonte: Martins Fontes Paulista

    ** Atenção: contém spoiler **
    O livro foi publicado pela primeira vez em 1965 sem grande sucesso. Foi editado novamente em 2003 e se tornou um fenômeno literário nos Estados Unidos. Dez anos depois, Stoner já era um livro consagrado na Europa.
    Um aspecto muito interessante da obra é que logo no primeiro parágrafo quase toda a vida de William Stoner nos é revelada, da entrada na universidade até o seu leito de morte. Filho único de fazendeiros humildes de um pequeno povoado rural no Missouri, Stoner passa a infância e a adolescência ajudando os pais nas atividades campestres até o momento em que eles decidem mandar o filho para a faculdade de Ciências Agrárias a fim de melhorar as condições de vida da família. Na universidade, porém, Stoner descobre sua paixão pela literatura, troca de curso, conclui seus estudos como doutor em Literatura Medieval e passa a trabalhar como professor assistente, exercendo este único cargo até os seus últimos dias.
    A história de Stoner se passa entre as décadas de 1910 e 1950 e sua vida é ligada por três grandes eventos históricos: a Primeira Guerra Mundial, na qual perde um de seus únicos amigos; a Crise de 1929, que leva o pai de Edith, sua esposa, a cometer suicídio; e a Segunda Guerra Mundial, que abala psicologicamente Stoner e proporciona o sentimento agonizante de desperdício, de mortes em vão - a grande estupidez da humanidade.

    A obra e minha análise
    É difícil explicar por que o livro tem sido muito aclamado. Stoner não é uma obra épica, cheia de grandes acontecimentos. Durante toda a leitura, procurei aquele "algo especial" que falei no começo da publicação e não encontrei. Até a última frase esperei por alguma reviravolta, algo grandioso, e simplesmente nada acontece. Penso que a magia de John Williams foi esta: o autor não enfeitou seu protagonista e sua história de vida. Entretanto, não se nega a qualidade, a elegância e a sensibilidade da escrita. Este é, de longe, o maior mérito de Williams, pois quem lê Stoner logo é capaz de notar a realidade complexa a qual somos inseridos, um contexto denso descrito com simplicidade.
    A impassibilidade e o silêncio de Stoner são muito frustrantes. Ele tem consciência de sua insatisfação e de tudo o que lhe ocorre e, ainda assim, nada faz para mudar. É triste e, até certo ponto, revoltante ler os desdobramentos de seu casamento com Edith condenado ao fracasso. Edith é uma mulher desprezível, que destrói o "coração" de Stoner - seu escritório - e os laços que ele tinha com a filha quando pequena. Ela o ataca de todas as formas possíveis e a inércia de Stoner chega a ser irritante. Entretanto, a obra não deixa claro qual é o elemento trágico de Edith; ao leitor é óbvio que há algum acontecimento marcante em sua vida que faz com que ela aja de modo horrível, mas não se sabe exatamente o que é. E é justamente isso que me deixou intrigada quanto ao final, em que conseguimos perceber a pequena sintonia que o casal encontra nos últimos momentos de vida Stoner.
    Aos poucos nos damos conta de como a relação com Grace, sua filha, vai se tornando cada vez mais distante, mas este afastamento parece intencional por parte de Grace, já amadurecida. Ela mesma procura se desvincular do pesado ambiente familiar. E como faz isso? Engravidando de um colega qualquer da faculdade, casando-se e, tal como os pais, condenando-se a uma relação fracassada e infeliz. A insensatez de Grace, no entanto, é inútil: o marido morre em conflito durante a Segunda Guerra, ela distancia-se do próprio filho e se torna alcoólatra.
    O que dizer dos conflitos profissionais que encontramos neste livro? O professor Lomax se utiliza de todos os meios possíveis para destruir a carreira de Stoner por ter reprovado Charles Walker, um estudante nitidamente incompetente e fantoche de Lomax. John Williams não nos revela os motivos da postura inflexível e da incessante proteção de Lomax para com seu aluno.
    E claro que não podemos deixar de mencionar a peça mais fundamental do romance e da vida de Stoner: Katherine Driscoll, a jovem professora que entra sutilmente na história e acaba tomando conta de alguns capítulos. Stoner "rejeitara o amor como o paraíso de uma religião falsa". Na relação extraconjugal com Katherine, descobre-o como uma "parte do devir humano, uma condição inventada e modificada momento a momento e dia após dia, pela vontade, pela inteligência e pelo coração". É um envolvimento apaixonante: a sincronia sexual, emocional e intelectual dos dois é perfeita, encontram-se um no outro e realmente é o momento de maior felicidade da vida de Stoner. Sentem-se plenos e transbordam. Contudo, não podemos nos esquecer da passividade do protagonista, que tem a chance de ser feliz com Katherine, mas ambos se recusam a ultrapassar os limites estabelecidos pelo amor clandestino.
    Confesso que a leitura de Stoner é muito cativante e a escrita sensível faz toda a diferença. Porém, pelos comentários que tinha lido sobre o livro eu realmente esperava algo mais tocante. Quando terminei a leitura, pensei: "Acabou? Não vai acontecer mais nada?", talvez porque o meu desejo de querer ver Stoner lutando contra as forças que o destruíram fosse maior que tudo. No entanto, o modo como John Williams narra a morte de Stoner é realmente memorável.
    Stoner traz algumas questões fundamentais: primeiramente, nenhum personagem é, de fato, feliz. Essa fuga de um padrão de felicidade me atraiu bastante. Depois, há o aspecto mais filosófico: Stoner foi um homem que viveu na mais completa indiferença, sempre "mais ou menos". Até que ponto vale a pena viver "mais ou menos", resignado, sempre sendo empurrado pela força da correnteza? Que sentido atribuímos à vida? O que o amor, ou a falta dele, pode fazer conosco?

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