Há alguns dias assisti ao mais recente filme de Tarantino: Os Oito Odiados. Como este não é um blog exclusivo sobre cinema, não me concentrarei nos aspectos técnicos; o propósito é levantar algumas reflexões além da trama composta por extensos diálogos ao longo das três horas de filme.
O caçador de recompensas John Ruth tem a missão de atravessar o Estado de Wyoming com sua prisioneira, a assassina Daisy Domergue, cujo destino está previamente traçado: ela deve ser enforcada em Red Rock. Durante o percurso, e sob uma nevasca violenta e arrepiante que se aproxima, eles encontram o Major Marquis Warren e, mais adiante, o futuro xerife Chris Mannix. Ambos solicitam carona a Ruth que, após todo um interrogatório sob as mais variadas suspeitas, acaba cedendo. A força implacável da natureza gélida os obriga a buscar abrigo em uma cabana, o Armazém da Minnie. Este já encontra-se ocupado por um grupo de homens: o carrasco britânico Oswaldo Mobray, o mexicano Bob, o general Sandy Smithers e o vaqueiro enigmático Joe Gage. John Ruth percebe que paira um mistério na cabana e que "cabeças vão rolar". Os oito odiados estão reunidos e prontos para desenrolar toda a história.
![]() |
Fonte: Cinema a dois |
O diretor e toda a equipe possuem seus méritos. Figurinos muito bons, roteiro interessante, elenco e fotografia que dispensam comentários e uma brilhante trilha sonora de Ennio Morricone, grande mestre na arte de elaborar músicas dos filmes de faroeste. Entretanto, a história em si me pareceu fraca, não é altamente elaborada. Apesar disso, a grande sacada está nas entrelinhas da narrativa. Tarantino, em Os Oito Odiados, lida com questões - neste caso, conflitos - bem pontuais que ainda persistem não apenas na sociedade norteamericana, mas em escala global: a desigualdade/pluralidade racial, étnica e de gênero.
Intencionalmente, são reunidos no mesmo lugar personagens que odeiam e são odiados, gerando um clima de tensão em que qualquer faísca pode ser fatal para uma explosão de sangue. Analisemos novamente os personagens: de um lado, Smithers, um general confederado que assassinou cruelmente milhares de soldados negros durante a Guerra Civil Americana e Mannix, que esteve presente na guerra junto à Confederação; de outro, o major negro Warren que atuou no mesmo conflito e que matou outros milhares de índios. Esta dualidade também se aplica ao mexicano Bob, o latino que simboliza os conflitos colonialistas que impulsionaram a formação de vários países - inclusive os Estados Unidos - e a dona do Armazém Minnie, negra que tinha aversão a mexicanos. Quanto aos carrascos, ao evidenciar a essência britânica de Mobray, fica clara a intenção de um personagem que represente o povo "fundador" dos Estados Unidos; ao mesmo tempo, John Ruth é a personificação da lei, de querer fazer o que precisa ser feito, de "seguir os protocolos". O.B. Jackson, o condutor da carruagem de Ruth, representa o proletariado, uma vez que no filme ele aparenta ser o que mais trabalha (seria ele a representação do valor protestante, que teve total influência na história norteamericana, de que "o trabalho dignifica o homem"?). Joe Gage, personagem de poucas palavras, é a figura do homem que deu duro em um negócio e conseguiu ganhar dinheiro, mas ainda assim de uma forma misteriosa e digna de desconfiança. Por fim, temos Daisy, que justamente por ser mulher e a única da trama, é desqualificada, inferiorizada e agredida normalmente pelos homens.
Os Oito Odiados é um retrato das tensões culturais e sociais da América: a mulher subordinada, a xenofobia e o ódio voltados aos que são "diferentes" e não pertencem ao mesmo grupo, o racismo explícito. Podemos perceber que Warren é um homem indiscutivelmente bruto e cruel, porém os diálogos deixam claro o quanto ele não consegue mais tolerar as discriminações que sofre, recorrendo à violência (e uma carta falsa de Abraham Lincoln) para se impor e se vingar. Basta observarmos o sadismo com que relata o modo como executou o filho do general Smithers. A questão de gênero se faz tão forte no filme que, na cena final, Mannix tem o poder de decidir quem deve viver e quem deve ser morto. Mesmo honrando sua cor e discriminando os negros, ele se une ao major Warren para executar Daisy, salientando que é melhor unir-se a um homem e deixar as desavenças raciais de lado - pelo menos por um momento - do que dar credibilidade a uma mulher.
O filme também é uma crítica ao caráter belicista enraizado nos Estados Unidos: a sociedade americana não só foi fundada e formada a partir de conflitos constantes como também é um valor que se faz presente na vida de muitos. A banda Lynyrd Skynyrd, por exemplo, já retratou este fato em algumas de suas canções. É o caso de God & Guns:
"God and guns keep us strong
That's what this country was founded on"
(Deus e armas nos mantêm fortes
É para isso que este país foi fundado)
Ou também em That ain't my America:
"It's to the women and men in their hands they hold a bible and a gun
And they ain't afraid of nothing when they're holding either one"
(É para os homens e mulheres que em suas mãos seguram uma bíblia e uma arma
E eles não têm medo de nada quando estão segurando qualquer um)
Os Oito Odiados pode ser visto como um filme rico e profundo sob este ângulo. Caso contrário, soa como mera história de faroeste na neve.
![]() |
Daisy é submetida a todo tipo de humilhação em Os Oito Odiados. Fonte: Adoro Cinema |
O filme também é uma crítica ao caráter belicista enraizado nos Estados Unidos: a sociedade americana não só foi fundada e formada a partir de conflitos constantes como também é um valor que se faz presente na vida de muitos. A banda Lynyrd Skynyrd, por exemplo, já retratou este fato em algumas de suas canções. É o caso de God & Guns:
"God and guns keep us strong
That's what this country was founded on"
(Deus e armas nos mantêm fortes
É para isso que este país foi fundado)
Ou também em That ain't my America:
"It's to the women and men in their hands they hold a bible and a gun
And they ain't afraid of nothing when they're holding either one"
(É para os homens e mulheres que em suas mãos seguram uma bíblia e uma arma
E eles não têm medo de nada quando estão segurando qualquer um)
Os Oito Odiados pode ser visto como um filme rico e profundo sob este ângulo. Caso contrário, soa como mera história de faroeste na neve.
0 comentários:
Postar um comentário