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  1. Nunca dois sem três

    sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

    "Tu me disseste: Eu te amo. Eu te disse: Espera. Eu ia dizer: Leva-me comigo. Tu me disseste: Vai embora."

    Jules e Jim é um clássico na literatura (1953) e no cinema (1962). Nesta publicação, pretendo enfatizar as semelhanças entre os trabalhos de Henri-Pierre Roché, autor do romance, e François Truffaut¹, diretor da película.
    Nossa história começa na Paris do início do século XX, no ano de 1907, com o surgimento da bela amizade entre o alemão Jules e o francês Jim. O primeiro, com uma personalidade muito marcante, que tende sempre a expor suas emoções, a se exaltar e, por vezes, ter crises por conta de seus exageros. O segundo, mais introvertido e acanhado. Amantes da arte, especialmente da literatura, compartilhavam e traduziam seus poemas juntos. Apaixonados pela vida, conheciam muitas mulheres. Resumindo: trata-se de um romance, e o mérito é que foge das convenções tradicionais de relacionamento.
    O filme pula a primeira parte do livro, na qual Jules pretende se casar com Lucie, uma "beldade gótica" e estudante de pintura. Também acaba não tendo sucesso com outras mulheres que são suas conhecidas ou que são apresentadas por intermédio de Jim. O ponto em comum das duas obras é uma viagem que os amigos fazem para a Grécia com o compatriota Albert, que lhes mostra uma coleção de fotos e, numa delas, notam um sorriso de uma estátua que os deixa fascinados. Os três decidem ir à ilha para "ver de perto" a estátua recentemente exumada.
    Eles a contemplam por uma hora em silêncio diante daquele sorriso poderoso, e prometem que se o encontrassem algum dia em alguma mulher, iriam atrás dele.
    Quando Jules e Jim retornam a Paris, conhecem a personagem mais intensa e complexa: Kathe (no filme, o nome é Catherine, mas vou manter o original), a mulher que tinha o sorriso da estátua.
    Os três logo se tornam grandes e inseparáveis amigos e fazem tudo juntos ao estilo "carpe diem". A imagem mais clássica do filme - que se tornou capa do livro - é os três apostando uma corrida, na qual Kathe está com um traje masculino e ganha trapaceando.


    Jules se apaixona demasiadamente por Kathe e pede a Jim para não interferir neste relacionamento, pois quer se casar com ela. Numa noite, após apreciarem uma peça de teatro², o trio passeia pelas margens do Sena e o mergulho de Kathe surpreende ambos, mais a Jules, que se mostra desesperado.


    Jules e Kathe se casam, mas logo vem a Primeira Guerra Mundial e a horrível experiência das trincheiras. Jules combate pela Alemanha na Tríplice Aliança e Jim pela França na Tríplice Entente. Ambos temem matar o outro, pois nem a rivalidade dos países é capaz de pôr fim à amizade e propriamente ao amor existente entre os dois.
    Com o fim dos conflitos, Jules e Jim se reencontram e o francês conhece o lar de Kathe, Jules e da pequena Sabine, filha do casal.³ 


    A crise do casamento é perceptível para Jim e os amigos têm uma conversa franca. Jules revela que tem conhecimento dos amantes de Kathe, inclusive Albert, o mesmo que lhes mostrou a estátua. Ela também conta sua versão para Jim num outro momento.
    Por fim, Jules se convence de que já não é possível manter o matrimônio e pede para que Jim se case com ela, pois não quer perdê-la definitivamente. Em nome da amizade, Jim aceita e passa a viver na mesma casa. Mas logo começam as crises, além de Kathe não conseguir engravidar. A relação entre Jim e Kathe também se torna insustentável. Paralelamente, desde o início do filme, sabemos que Jim se envolve com a francesa Gilberte. Num reencontro em Paris, Jim decide que quer se casar com Gilberte e viver ao lado da bela mulher. Fora de cogitação para Kathe; ela não consegue aceitar e o desfecho da história também é inesperado: Jim e Kathe estão no carro desta enquanto Jules os assiste. Repentinamente, Kathe vai com o veículo em direção a um rio ali próximo. Jules presencia o último mergulho no Sena.

    Breve análise
    Para a surpresa de muitos, inclusive do então crítico de cinema Truffaut, Jules et Jim, título original, é a primeira obra publicada de Roché, aos 76 anos! E mais: trata-se de um romance autobiográfico, com seus relatos e memórias.
    Só é possível analisar a dimensão e a importância deste clássico levando em consideração a época em que foi produzido e como ainda continua tão marcante e presente. Como pudemos perceber, trata-se de um romance libertário em plena década de 1960 (que já dava seus indícios do surgimento da contra-cultura) e que, ainda nos dias de hoje, é cativante e impactante. A obra trabalha muito bem o aspecto emocional e "le tourbillon de la vie" propriamente dito, a grande canção do filme que, por sinal, apresenta uma trilha sonora lindíssima e comovente. 
    O que percebemos nos personagens (cada um a seu modo) é que eles, com suas contradições, defendem a intensidade das emoções: do amor, da paixão, da amizade e do companheirismo. Toda e qualquer forma de afeto revelada na trama causa a sensação de que os atores estão realmente entregues à história e estão vivendo-a de verdade. Isso faz com que as cenas se tornem puras, belas e limpas, sem recorrer a exageros ou superficialidades.
    Kathe é uma personagem que merece destaque. A princípio, o diretor trabalha com a ideia de mulher ideal quando Jules e Jim encontram nela o sorriso da estátua. No entanto, a jovem apresenta uma personalidade forte e ao mesmo tempo contraditória. É temperamental e vive oscilando emocionalmente. É alguém que busca o tempo todo a atenção dos outros e, em alguns momentos, sua felicidade parece depender da infelicidade dos amigos. Kathe não mede esforços para atingir o que procura - na verdade, parece que não sabe ao certo o que busca, o que revela sua forma de se sobressair em quaisquer ocasiões utilizando-se de todos os meios possíveis, mostrando-nos seu caráter de mulher imprevisível. O modo de vida escolhido por Kathe também não soa como protesto. Truffaut afirmou: "Entretanto, e a despeito de sua aparência "moderna", o filme não tem caráter polêmico. Provavelmente, a jovem mulher de Jules e Jim quer viver da mesma forma que um homem, mas esta é uma particularidade de seu caráter e não uma atitude feminista e reivindicatória".
    Jules, em conversa com Jim, define Kathe da melhor forma possível: "Não é excepcionalmente bela, nem inteligente, nem honesta, mas é uma mulher de verdade. É a mulher que nós amamos. É a mulher que todos os homens desejam. Por que Catherine, passando por cima de tudo, exige sempre a nossa presença? Porque nós lhe damos completa e total atenção, como a uma rainha". Isso faz de Kathe uma personagem amável e, ao mesmo tempo, detestável.
    Como afirmei no início, Roché e Truffaut, através de diálogos simples, trabalham com temas que, para muitos, são tabus: a liberdade sexual, a infidelidade e a busca por valores que fogem da linha tradicional e conservadora no que diz respeito a relacionamentos amorosos. É este o grande mérito dos autores: o tom não é de imposição de uma moral, seja ela qual for, pois a abordagem do filme não é apelativa nem erótica; o tom de sofrimento e tristeza é muito claro nos três personagens. Truffaut declarou em uma entrevista: "Nem sempre sendo o casal a solução ideal e satisfatória, parece legítimo buscar uma moral diferente, outros modos de vida, embora todos esses arranjos estejam fadados ao fracasso".
    É por esta razão que faço questão de citar Michel Delahaye, para encerrar: "Que a nobreza de Jules e Jim o façam escapar dos atentados de todos aqueles para quem é imoralidade a busca de outra moralidade, feiura, a de outra beleza - que o façam planar acima de todas as ortodoxias, velhas ou novas".
    Jules e Jim não é uma simples história de amor em que todos são felizes para sempre.



    Referência:
    Truffaut, François. Jules et Jim: o romance, o roteiro/ roteiro de François Truffaut, romance de Henri-Pierre Roché. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.

    Notas
    1: Truffaut é um nome marcante do cinema francês e um pouco de sua difícil trajetória de vida pode ser vista no filme em que ele mesmo dirigiu, Os Incompreendidos (1959).
    2: No livro, o mergulho de Kathe ocorre após um jantar que sela sua união com Jules.
    3: No livro, Kathe tem duas filhas com Jules: Lisbeth e Martine. 


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