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  1. Os sonhos e as (des)ilusões de Serra Pelada

    sábado, 9 de novembro de 2013

    Serra Pelada: A Lenda da Montanha de Ouro é um filme que me instigou a refletir tanto sobre a realidade nua e crua do garimpo quanto as falhas apresentadas. Começarei pelo ponto mais fraco: em alguns momentos, tive a sensação de que Serra Pelada serviu apenas como cenário de dramas pessoais de uma película qualquer. Serra Pelada deveria ser a grande protagonista de toda a história, mas foi base de casos aleatórios que se cruzam em determinados momentos. 
    Em contrapartida, um dos grandes méritos do filme é o desconforto que ele causou ao apresentar o enorme formigueiro humano, a grande concentração de homens, de trabalho e de suor. Serra Pelada significou a busca pelo ouro brasileiro do século XX, no final dos anos 70 e início dos 80.


    Os milhares de homens vinham de todos os cantos do Brasil e muitos deixaram os considerados "bens mais preciosos" - família, estudo, trabalho - em troca de uma condição absolutamente degradante, pois Serra Pelada representou, acima de tudo, a forma mais rápida e fácil de ficar rico, de realizar sonhos e de se criar ilusões. No filme, a atenção é particularmente voltada para os amigos Joaquim e Juliano que, inicialmente, trabalham como garimpeiros e, tendo sucesso no que fazem, começam a despertar a atenção de dois "chefões": Carvalho e Lindo Rico, com personalidades completamente distintas, porém símbolos de ameaça e perigo bem parecidos, cada um à sua maneira. Apesar de os amigos seguirem caminhos opostos e serem guiados por ideias, sonhos e vontades distintas - o que os leva a desfechos diferentes na trama -, ambos tomam consciência do que significa a vida no garimpo através de uma frase dita duas vezes: "Este lugar piora as pessoas". Podemos acompanhar a busca desenfreada por dinheiro, poder e riqueza, e como estes transformam os indivíduos.
    O que podemos perceber ao longo do filme é a transformação da natureza para se atingir finalidades típicas de uma sociedade dominada pelo capital. São combinações historicamente determinadas de forças produtivas, marcadas fortemente pelo antagonismo e por uma interdependência inexorável entre os detentores dos meios de produção (e do capital) e os portadores da força de trabalho. Serra Pelada me fez lembrar de uma passagem da obra Fausto, de Goethe:

    "Eles iriam esbravejar em vão todos os dias,
    Cavar e esburacar, pazada por pazada;
    Onde as tochas enxameavam à noite,
    Havia uma represa quando acordávamos.
    Sacrifícios humanos sangravam,
    Gritos de horror iriam fender a noite,
    E onde as chamas se estreitam na direção do mar,
    Um canal iria saudar a luz."


    Outra atenção merecida é para a personagem Tereza, noiva de Carvalho e amante de Juliano. Por exemplo, eu não me lembro, nas aulas de História, de alguma reflexão sobre o papel e função social da mulher no garimpo. Embora o foco esteja no romance de Tereza com Juliano, é possível compreender, pelas cenas de festas que mostram os momentos ociosos dos trabalhadores e naquelas em que a bela jovem está com o noivo ou o amante, que a mulher aparece mais como um objeto de desejo qualquer, desconsiderando os afetos e a convivência que um relacionamento acarreta. As mulheres se apresentam como súditas: devem servir e atender às necessidades dos homens que as procuram, normalmente - e somente - ligadas às relações físicas, carnais. Por isso há o jogo dos trajes minimalistas, da sensualidade, da provocação. Mas não pára aí. Por ser vista como objeto de prazer e diversão, consequentemente a mulher acaba se tornando propriedade do homem. O sentimento de posse é tão marcante no filme que provoca morte. Eis uma outra realidade bem exibida: a dominação e a desigualdade de gênero. Enquanto Serra Pelada apresenta relações nítidas de hierarquia (proíbem entrada de mulheres, armas de fogo, muitos trabalham para poucos), o local onde se encontram os prazeres e a possibilidade de liberdade aparece como uma espécie de faroeste, uma terra sem lei, onde tudo é permitido - basta estar lá.


    A partir das contradições e complexidades apresentadas no universo do trabalho e na esfera afetiva é que são criadas as desilusões de Serra Pelada, inclusive e principalmente em Juliano e Joaquim. No entanto, esta premissa parece ser válida para nossas vidas também, aqui e agora. É como se a desilusão fosse necessária, mais cedo ou mais tarde. É por esta razão que a mais importante lição do filme é revelada por Joaquim, no final: É mais fácil desistir dos nossos sonhos [no meio do caminho] do que abrir mão deles [em princípio].

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