Muitos consideram o dia 20 de novembro uma grande hipocrisia. E o argumento é o de que "se um dia é para os negros, os demais são dos brancos", ou "por que não criar então um dia para cada raça existente no Brasil?". É nítido que as pessoas que defendem arduamente este posicionamento baseiam-se em superficialidades, provavelmente devem ter lido muito pouco sobre o assunto, além do referencial estar totalmente pautado naquilo que é propagado pelos grandes meios de comunicação, e politicamente aliadas ao conservadorismo. Não é necessário possuir todos esses atributos; um já é suficiente.
Normalmente, as pessoas acreditam que a abolição da escravatura trouxe condições de igualdade entre brancos e negros e tendem a apelar para o argumento de que "todos são iguais perante a lei", tecendo inúmeras críticas ao dia da consciência negra e tudo o que envolve políticas voltadas para os negros, como o sistema de cotas no ensino superior.
Primeiramente, a libertação dos escravos foi mais uma imposição, uma "falta de alternativa", dadas as transformações e circunstâncias da estrutura econômica brasileira. Não se tratou de um gesto espontâneo ou de reconhecimento e valorização dos homens e mulheres anteriormente escravizados. O que geralmente não se diz é que este período coincidiu com o fenômeno da imigração e as empresas, ao invés de contratarem os negros libertos, continuaram a empregar os imigrantes e seus descendentes. Nesse sentido, Florestan Fernandes escreveu: "Os negros e mulatos ficaram à margem ou se viram excluídos da prosperidade geral, bem como de seus proventos políticos, porque não tinham condições para entrar nesse jogo e sustentar suas regras. Em consequência, viveram dentro da cidade, mas não progrediram com ela e através dela".
Há ainda uma curiosidade na relação abolição-cidadania negra. No final do século XIX, o governo mandou queimar a documentação referente à escravatura no Brasil, como símbolo de um gesto nobre, fraterno e solidário para com todos os brasileiros. No entanto, este ato serviu apenas para apagar a memória histórica daquela gente e, sobretudo, para omitir os fatos.
Em segundo lugar, a maioria dos indivíduos não tem o hábito de refletir. Vivemos dentro de condições estruturais e sociais específicas que são frutos de relações produzidas historicamente. É inegável que os mais de 300 anos de escravidão no Brasil só trouxeram desvantagens aos negros e colocou em vigor uma supremacia racial-étnica. Esta experiência de exclusão tirou a consciência da dignidade humana das populações negras. É uma dívida impagável.
É possível identificarmos alguns elementos da ideologia do branco, além dos que já foram mencionados. O mais evidente - e o mais mentiroso - é o famoso mito da democracia racial brasileira. Trata-se de uma grande dissimulação em relação à existência do preconceito contra negros e mulatos que é vivido e reconstruído diariamente.
Outro comportamento desta ideologia é a discussão aberta sobre o preconceito e o racismo através da constatação dos fatos que, sim, são evidentes, mas também nada se pode fazer para revertê-los. Ou seja, estamos falando de uma postura resignada que pretende se distanciar do problema. Afinal, "infelizmente o preconceito é uma realidade, mas eu não sequestrei nenhum negro e também não o coloquei em navio algum para ser escravo no Brasil".
Um dos argumentos mais contraditórios desta ideologia são as afirmações do tipo: "Preto e branco são cores. Raça só existe uma, que é a humana". Os mais espertos defendem esta ideia afirmando que há uma comprovação biológico-científica alegando que a quantidade de genes que nos diferenciam na cor da pele, no formato do nariz e na espessura dos lábios, por exemplo, é insignificante para podermos classificar cada um como pertencente a um determinado tipo de raça. A questão é: por mais que esta comprovação seja realmente verdadeira, não é a dominante cultural, pois o problema da raça está pautado na cor que as pessoas carregam na pele e não em sua composição genética. Se a ciência não prova a existência das raças, elas não podem ser uma realidade. São, portanto, uma invenção cultural humana construída socialmente e utilizada simbolicamente como meio de opressão e distinção. Assim, passamos a acreditar que raças existem e o racismo se torna uma realidade.
Diante do que foi apresentado até agora, a ideia que defendo é a de que a raça é uma invenção colonial e se reinventa todos os dias. O racismo se aprofunda, mesmo quando pensamos que estamos lutando e criando leis e políticas de inclusão. Na época do Brasil colonial, a raça era uma norma jurídica e econômica. Hoje, ela se autonomizou, tornou-se uma norma não-dita. E as práticas de discriminação podem assumir um caráter explícito ou velado.
É importante deixar claro que estamos nos atendo ao problema racial no Brasil, mas não podemos nos esquecer de que a raça é uma marca lida por um olhar histórico. Ou seja, ela é "móvel", dadas as leituras raciais distintas ao redor do mundo; depende de um contexto definido para ter sentido de acordo com o que é considerado socialmente relevante. Em nosso caso, antes da racialização, o "branco" não existia. O eurocentrismo é puro racismo aplicado na produção de saberes. Isso prova que temos uma imaginação histórica solidificada e que precisamos reformular nossas formas de constituição do conhecimento. Este é o verdadeiro sentido do dia da consciência negra, uma data extremamente necessária.
Aproveito também para deixar três indicações que considero imprescindíveis para o aprofundamento da discussão:
- Octavio Ianni: Raças e Classes Sociais no Brasil
E duas entrevistas:
- História negra, escola branca: clique aqui.
- Nosso racismo é um crime perfeito: clique aqui.
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