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  1. Eu (não) sou Charlie

    domingo, 11 de janeiro de 2015

    O ano de 2015 mal começou e já vem dando sinais de que promete deixar as mentes pensantes inquietas.
    O mundo todo dirigiu os olhares à França semana passada num misto de revolta, indignação, tristeza e vingança diante do impacto causado pelo pior atentado das últimas cinco décadas no país. Os irmãos Said e Chérif Kouachi, supostamente responsáveis pelo ataque ao jornal Charlie Hebdo que culminou em 12 mortes (sendo dez jornalistas e dois policiais, um destes, inclusive, muçulmano) e 11 feridos, teriam cometido tamanha atrocidade a fim de vingar o Profeta Maomé. De acordo com informações policiais, os autores do crime chegaram até a gritar “Vingamos o Profeta”.
    Para o professor Reginaldo Nasser, cujas pesquisas estão concentradas na área de conflitos e segurança internacionais e terrorismo, o atentado foi planejado e os alvos eram específicos, a contar pela escolha das armas. “Outro aspecto é que o ataque foi muito bem organizado, por algum grupo que tem força e estratégia pra isso. [...] Os terroristas agiram com muita tranquilidade e isso expõe falhas gravíssimas no sistema de segurança francês”. Correm notícias de que a Al Qaeda no Iêmen assumiu a autoria do atentado.
    O grupo Estado Islâmico atribuiu aos irmãos o título de heróis. Neste mesmo dia, 150 mil pessoas foram às ruas de Paris em nome da democracia e da liberdade de expressão. Em outros países, inclusive no Brasil, aconteceram manifestações. Por outro lado, na Alemanha, houve manifestação pela expulsão dos muçulmanos da Europa. Na sexta-feira, a polícia francesa matou os dois suspeitos, que estavam próximos de Paris. Simultaneamente, ocorria na capital um ataque a um mercado judaico, realizado por um homem que estava ligado aos irmãos Kouachi.
    O Charlie Hebdo é internacionalmente conhecido por sua ironia e tom provocativo. É, ao mesmo tempo, desafiador porque nunca hesitou em retratar líderes políticos ou religiosos (sejam eles pertencentes às fés católica e judaica ou ao Islã), e o fez de forma satírica e corajosa, mas também constrangedora e discriminatória. Há oito anos o jornal vinha sofrendo ameaças e duas questões centrais devem fazer parte da nossa reflexão: a liberdade de pensamento e de expressão e os possíveis desdobramentos deste acontecimento.
    Como se sabe, a França tem um notável histórico de tensões em relação aos imigrantes, sobretudo aos muçulmanos. De seus 66 milhões de habitantes, de 5 a 6 milhões são muçulmanos, cuja maioria vive à margem da sociedade e está desempregada. Lamentavelmente, vários ataques às instituições muçulmanas foram registrados depois do ocorrido ao Charlie Hebdo e a tendência é que o preconceito com os imigrantes aumente em toda a Europa (como aconteceu nos Estados Unidos em 2001). Infelizmente, a maioria das pessoas está propensa a generalizar ocorrências individuais e projetá-las para o plano coletivo.
    Outra tendência é que a extrema direita se fortaleça, como já vem acontecendo, com seu discurso ultranacionalista e xenofóbico.  Marine Le Pen, da Frente Nacional, é a principal representante deste movimento e, por enquanto, é favorita nas eleições de 2017. Em contrapartida, é importante lembrar que o Charlie Hebdo se configura na ala da esquerda; Charb, o diretor do semanário assassinado, tinha forte ligação com os partidos progressistas franceses, o que nos leva a concluir que o episódio da semana passada está além da esfera religiosa. É também uma questão política: foi um baque para a esquerda e “aquela mãozinha” para a direita.
    Ainda é cabível a comparação de como a mídia trata o islamismo e os movimentos de direita. Em 2011, um fundamentalista cristão de extrema direita executou 76 pessoas na Noruega. A justificativa? Ele era louco, foi um caso isolado, não associado à crença religiosa. No caso da França e em outros eventos, a sensação que ficou foi a que todos os muçulmanos são perigosos e não merecem confiança.
    Diante do ocorrido, cabem também algumas perguntas: “Onde a liberdade de expressão começa e onde termina?”, “Devemos defender as publicações de Charlie Hebdo a partir do pressuposto da liberdade de expressão?”, “Até que ponto uma charge é uma crítica e quando passa a ser uma ofensa?”, “O que a liberdade nos permite fazer ou dizer?”. Conhecer o teor, o conteúdo do jornal, são fundamentais para direcionarmos nossas respostas. É bem verdade que o Charlie Hebdo tem ótimas charges e carictaruas do mundo do entretenimento. Porém, nosso foco são as de caráter religioso. Abaixo, algumas imagens: 


    "Enfim livre" - referente à renúncia de Bento XVI  

    A verdadeira história do menino Jesus

    Maomé beijando um cartunista com a frase: Amor, mais forte que o ódio

    Muçulmano recebe tiros. "O Corão é uma merda". O aviso em amarelo diz: Ele não pára balas.

    Ironia à Santíssima Trindade: O Pai, o Filho, o Espírito Santo. Referência ao casamento gay

    Intocáveis. Rabino empurra muçulmano com o aviso: Não se deve zombar.

    Judeu, católico e muçulmano: Censurem Charlie Hebdo!



    Vaticano: Outra eleição fraudada. Jesus Cristo: Soltem-me, eu quero voltar!

    Se Maomé voltasse...
    - Eu sou o Profeta, estúpido!
    - Cale a boca, infiel!

    Maomé: nasce uma estrela!

    Primeiramente, independentemente do que pensemos sobre as ilustrações acima, o ataque terrorista ao Charlie foi horrível e injustificável; a intolerância religiosa foi levada às últimas consequências. Porém, penso ser importante a diferença entre criticar ou questionar o caráter político-ideológico do islamismo, do judaísmo e do catolicismo e de atacar a fé dos adeptos dessas religiões. É uma linha tênue. As charges de Maomé, por exemplo, não têm apenas caráter questionador.
    Nos jornais, nas redes sociais e nas manifestações, a frase “Je suis Charlie” (Eu sou Charlie) se propagou em velocidade indescritível. O que significa ser Charlie? Pode ser em prol de uma imprensa livre de autocensura e do politicamente correto, mas também irresponsável ao ridicularizar as fés professadas mundo afora.
    Talvez o Charlie Hebdo nunca tenha se preocupado de forma real com o contexto político-social dos muçulmanos na França e em toda a Europa; o humor “laico” e independente estaria acima de tudo. Entretanto, apesar de nos referirmos ao islamismo apenas como uma religião, ele está historicamente ligado à identidade cultural e política de um povo. A partir dos preceitos do Islã, qualquer representação do profeta Maomé é considerada ofensiva. Mas o semanário sempre foi além da pura representação, e mesmo aqueles que não são adeptos do Islã não deveriam ver apenas como uma sátira, uma vez que legitima a invisibilidade dessa população e não abre espaço para os diálogos de combate ao preconceito.
    Isso não torna, evidentemente, a comunidade muçulmana privilegiada. Acredito muito numa liberdade responsável e tolerante em relação a todas às religiões ou fatos que merecem ser caracterizados por cartunistas. Este humor livre, responsável e tolerante é possível. Inclusive, se pensarmos no que os humoristas brasileiros (alguns, infelizmente, de muita credibilidade) têm feito apenas “em nome do humor”, numa espécie de vale-tudo, também encontraremos discursos preconceituosos em relação a grupos sociais específicos. 

    Sem humor nós todos estamos mortos. Mas... que tipo de humor?


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