O ano de 2015 mal começou e já vem
dando sinais de que promete deixar as mentes pensantes inquietas.
O mundo todo dirigiu os olhares à
França semana passada num misto de revolta, indignação, tristeza e vingança
diante do impacto causado pelo pior atentado das últimas cinco décadas no país.
Os irmãos Said e Chérif Kouachi, supostamente responsáveis pelo ataque ao
jornal Charlie Hebdo que culminou em 12 mortes (sendo dez jornalistas e dois
policiais, um destes, inclusive, muçulmano) e 11 feridos, teriam cometido
tamanha atrocidade a fim de vingar o Profeta Maomé. De acordo com informações
policiais, os autores do crime chegaram até a gritar “Vingamos o Profeta”.
Para o professor Reginaldo Nasser,
cujas pesquisas estão concentradas na área de conflitos e segurança
internacionais e terrorismo, o atentado foi planejado e os alvos eram
específicos, a contar pela escolha das armas. “Outro aspecto é que o ataque foi
muito bem organizado, por algum grupo que tem força e estratégia pra isso.
[...] Os terroristas agiram com muita tranquilidade e isso expõe falhas
gravíssimas no sistema de segurança francês”. Correm notícias de que a Al Qaeda no Iêmen assumiu a autoria do atentado.
O grupo Estado Islâmico atribuiu aos
irmãos o título de heróis. Neste mesmo dia, 150 mil pessoas foram às ruas de
Paris em nome da democracia e da liberdade de expressão. Em outros países,
inclusive no Brasil, aconteceram manifestações. Por outro lado, na Alemanha,
houve manifestação pela expulsão dos muçulmanos da Europa. Na sexta-feira, a
polícia francesa matou os dois suspeitos, que estavam próximos de Paris. Simultaneamente, ocorria na capital um ataque a um mercado judaico, realizado por
um homem que estava ligado aos irmãos Kouachi.
O Charlie Hebdo é internacionalmente
conhecido por sua ironia e tom provocativo. É, ao mesmo tempo, desafiador
porque nunca hesitou em retratar líderes políticos ou religiosos (sejam eles
pertencentes às fés católica e judaica ou ao Islã), e o fez de forma satírica e
corajosa, mas também constrangedora e discriminatória. Há oito anos o jornal
vinha sofrendo ameaças e duas questões centrais devem fazer parte da nossa
reflexão: a liberdade de pensamento e de expressão e os possíveis
desdobramentos deste acontecimento.
Como se sabe, a França tem um notável
histórico de tensões em relação aos imigrantes, sobretudo aos muçulmanos. De
seus 66 milhões de habitantes, de 5 a 6 milhões são muçulmanos, cuja maioria
vive à margem da sociedade e está desempregada. Lamentavelmente, vários ataques
às instituições muçulmanas foram registrados depois do ocorrido ao Charlie Hebdo
e a tendência é que o preconceito com os imigrantes aumente em toda a Europa
(como aconteceu nos Estados Unidos em 2001). Infelizmente, a maioria das
pessoas está propensa a generalizar ocorrências individuais e projetá-las para
o plano coletivo.
Outra tendência é que a extrema direita
se fortaleça, como já vem acontecendo, com seu discurso ultranacionalista e
xenofóbico. Marine Le Pen, da Frente
Nacional, é a principal representante deste movimento e, por enquanto, é
favorita nas eleições de 2017. Em contrapartida, é importante lembrar que o
Charlie Hebdo se configura na ala da esquerda; Charb, o diretor do semanário assassinado,
tinha forte ligação com os partidos progressistas franceses, o que nos leva a
concluir que o episódio da semana passada está além da esfera religiosa. É
também uma questão política: foi um baque para a esquerda e “aquela mãozinha”
para a direita.
Ainda é cabível a comparação de como a
mídia trata o islamismo e os movimentos de direita. Em 2011, um fundamentalista
cristão de extrema direita executou 76 pessoas na Noruega. A justificativa? Ele
era louco, foi um caso isolado, não associado à crença religiosa. No caso da
França e em outros eventos, a sensação que ficou foi a que todos os
muçulmanos são perigosos e não merecem confiança.
Diante do ocorrido, cabem também algumas
perguntas: “Onde a liberdade de expressão começa e onde termina?”, “Devemos
defender as publicações de Charlie Hebdo a partir do pressuposto da liberdade
de expressão?”, “Até que ponto uma charge é uma crítica e quando passa a ser
uma ofensa?”, “O que a liberdade nos permite fazer ou dizer?”. Conhecer o teor,
o conteúdo do jornal, são fundamentais para direcionarmos nossas respostas. É bem verdade que o Charlie Hebdo tem ótimas charges e carictaruas do mundo do entretenimento. Porém, nosso foco são as de caráter religioso. Abaixo, algumas imagens:
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"Enfim livre" - referente à renúncia de Bento XVI |
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A verdadeira história do menino Jesus |
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Maomé beijando um cartunista com a frase: Amor, mais forte que o ódio |
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Muçulmano recebe tiros. "O Corão é uma merda". O aviso em amarelo diz: Ele não pára balas. |
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Ironia à Santíssima Trindade: O Pai, o Filho, o Espírito Santo. Referência ao casamento gay |
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Intocáveis. Rabino empurra muçulmano com o aviso: Não se deve zombar. |
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Judeu, católico e muçulmano: Censurem Charlie Hebdo! |
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Vaticano: Outra eleição fraudada. Jesus Cristo: Soltem-me, eu quero voltar! |
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Se Maomé voltasse... - Eu sou o Profeta, estúpido! - Cale a boca, infiel! |
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Maomé: nasce uma estrela! |
Primeiramente, independentemente do que
pensemos sobre as ilustrações acima, o ataque terrorista ao Charlie foi
horrível e injustificável; a intolerância religiosa foi levada às últimas
consequências. Porém, penso ser importante a diferença entre criticar ou
questionar o caráter político-ideológico do islamismo, do judaísmo e do catolicismo e de
atacar a fé dos adeptos dessas religiões. É uma linha tênue. As charges
de Maomé, por exemplo, não têm apenas caráter questionador.
Nos jornais, nas redes sociais e nas
manifestações, a frase “Je suis Charlie” (Eu sou Charlie) se propagou em
velocidade indescritível. O que significa ser Charlie? Pode ser em prol de uma
imprensa livre de autocensura e do politicamente correto, mas também
irresponsável ao ridicularizar as fés professadas mundo afora.
Talvez o Charlie Hebdo nunca tenha se
preocupado de forma real com o contexto político-social dos muçulmanos na
França e em toda a Europa; o humor “laico” e independente estaria acima de tudo. Entretanto,
apesar de nos referirmos ao islamismo apenas como uma religião, ele está
historicamente ligado à identidade cultural e política de um povo. A partir dos
preceitos do Islã, qualquer representação do profeta Maomé é considerada
ofensiva. Mas o semanário sempre foi além da pura representação, e mesmo
aqueles que não são adeptos do Islã não deveriam ver apenas como uma sátira, uma vez que legitima a invisibilidade dessa população e não abre espaço para os
diálogos de combate ao preconceito.
Isso não torna, evidentemente, a
comunidade muçulmana privilegiada. Acredito muito numa liberdade responsável e
tolerante em relação a todas às religiões ou fatos que merecem ser
caracterizados por cartunistas. Este humor livre, responsável e tolerante é
possível. Inclusive, se pensarmos no que os humoristas brasileiros (alguns, infelizmente,
de muita credibilidade) têm feito apenas “em nome do humor”, numa espécie de
vale-tudo, também encontraremos discursos preconceituosos em relação a grupos
sociais específicos.
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Sem humor nós todos estamos mortos. Mas... que tipo de humor? |
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