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  1. O Anti-Trump

    terça-feira, 24 de maio de 2016

    Sadiq Khan, à esquerda, eleito prefeito de Londres, e Donald Trump, possível candidato à presidência nos Estados Unidos. Fonte: RT.






    O acontecimento político mais importante das últimas semanas não foi o surgimento de Donald J. Trump como provável indicado presidencial do Partido Republicano, e sim a eleição de Sadiq Khan, muçulmano, filho de um motorista de ônibus londrino, ao cargo de prefeito de Londres.
    Trump não conquistou nenhum cargo político ainda, mas Khan, o candidato do Partido Trabalhista, esmagou o conservador Zac Goldsmith e assumiu a prefeitura de uma das maiores cidades do mundo, uma vibrante metrópole onde é possível ouvir todas as línguas. Em sua vitória, um triunfo sobre as calúnias que tentaram vinculá-lo ao extremismo islâmico, Khan se levantou pela abertura contra o isolacionismo, pela integração contra o confronto, pela oportunidade a todos contra o racismo e a misoginia. Ele foi o anti-Trump.
    Antes da eleição, Khan disse ao meu colega Stephen Castle: "Eu sou londrino, sou europeu, sou britânico, sou inglês, sou de religião islâmica, de origem asiática, de tradição paquistanesa, sou pai e marido".
    O mundo do século 21 será moldado por essas identidades multifacetadas tão subestimadas, pelas cidades florescentes que celebram a diversidade, e não por algum sujeito branco dado a agressões verbais, insolente, intolerante, defensor do princípio da "América em primeiro lugar", ansioso por construir muros.
    Vale a pena observar que, com a proibição da entrada de muçulmanos que não tenham a cidadania americana no país, proposta por Trump, Khan não teria permissão de visitar os Estados Unidos. Para usar uma das frases favoritas de Trump, isso seria um "desastre completo e total". Tornaria os EUA assunto de zombaria ainda maior para o mundo já horrorizado com a ascensão do candidato republicano.
    A eleição de Khan é importante porque desmente a fácil metáfora de que a Europa está sendo tomada pelos islamistas jihadistas. Ela enfatiza o fato de que os atos terroristas ocultam um milhão de invisíveis histórias de sucesso entre as comunidades muçulmanas europeias. Khan, um dos sete filhos de uma família de imigrantes paquistaneses, cresceu em habitações do governo e acabou se tornando um advogado da área de direitos humanos e ministro do governo. Ele obteve mais de 1,3 milhão de votos na eleição de Londres, uma vitória pessoal jamais igualada por um político na história britânica.
    Sua eleição é importante porque as vozes mais eficientes contra o terrorismo islamista são as dos muçulmanos e Khan foi preparado para se manifestar a respeito. Depois dos ataques de Paris, no ano passado, ele disse num discurso que os muçulmanos tinham um "papel especial" a desempenhar contra o terrorismo, "não porque sejamos mais responsáveis do que os outros, como alguns afirmaram equivocadamente, mas porque podemos ser mais eficientes no ataque ao extremismo do que quaisquer outros".
    Khan também quis falar à comunidade judaica da Grã-Bretanha, repudiando energicamente o crescente antissemitismo nas fileiras trabalhistas que, no mês passado, provocou a suspensão de Ken Livingstone, um ex-prefeito de Londres, do partido.
    Como George Eaton observou na revista The New Statesman: "Khan será uma personalidade de importância global. Sua eleição é uma censura aos extremistas de todos os quadrantes, de Donald Trump a Abu Bakr Al-Baghdadi, que afirmam que as religiões não podem coexistir pacificamente".
    Trump como político é o produto do medo e acima de tudo da revolta americana. Nas últimas semanas, um estudante da Califórnia em Bekerley foi escoltado para fora de um avião da Southwest Airlines porque foi ouvido falar árabe, e um italiano de tez escura e cabelos cacheados, economista da Ivy League, foi retirado de um voo da American Airlines por ter sido visto rabiscar cálculos matemáticos que seu vizinho de assento achou suspeitos.
    Trump - que o cientista político Norm Ornstein descreveu como "a pessoa mais insegura e egoísta do país" - é o porta-voz dessa América assustada  que vê ameaças em toda parte (até num matemático italiano).
    Quando Trump declara: "A 'América em primeiro lugar' será o tema principal e predominante do meu governo", o que o resto do mundo ouve é uma nação revoltada exibindo o seu poder.
    A ascensão de Khan, ao contrário, é uma história de vitória sobre os medos gerados pelos atentados de 11 de setembro. Sua vitória é uma censura sobre Osama bin Laden, ao Estado Islâmico, à ideologia jihadista de todos os quadrantes - e aos políticos que disseminam o ódio como Trump que escolheu o lema "muçulmano igual a perigo". Khan argumentou que uma maior integração é essencial e que "muitos muçulmanos britânicos crescem sem conhecer pessoas de uma cultura diferente".
    Sigmund Freud escreveu: "É impossível menosprezar a medida em que a civilização vem sendo construída sobre uma renúncia ao instinto". Donald Trump escreveu: "Aprendi a ouvir e a confiar no meu instinto. Ele é um de meus mais valiosos conselheiros". E recentemente ele disse: "Nós, enquanto nação, devemos ser mais imprevisíveis".
    Muito bem.
    Se juntarmos um egoísta, um machão, um poder imenso e a predileção pela imprevisibilidade dirigida pelo instinto, obteremos uma mescla perigosa que poderá pôr em risco a própria civilização. Se Trump for eleito, aqueles seus dedos finos terão acesso aos códigos nucleares.
    Nesse contexto, a vitória de Sadiq Khan nos tranquiliza porque ele representa certas correntes mundiais - que buscam a identidade global e a integração - e que vão se provar mais fortes com o tempo do que com o tribalismo e o nativismo de Trump.

    Texto de Roger Cohen. Artigo original publicado no The New York Times.

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