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  1. A máquina do tempo e a essência da humanidade

    terça-feira, 26 de abril de 2016

    A Máquina do Tempo, de H. G. Wells, é a obra que dá início aos demais livros com o tema "viagem no tempo". Wells é fruto da mentalidade do século XIX (o livro foi publicado em 1895): a industrialização que produziu avanços técnicos e científicos e que afirmou o domínio do homem sobre o espaço e a natureza.
    Inicialmente, a narrativa é feita por um personagem secundário e que sequer sabemos seu nome. A história começa em meio a um jantar na casa do protagonista, um cientista intitulado apenas como Viajante do Tempo, e com uma discussão matemática entre os convidados - o tempo como uma quarta dimensão. O Viajante é descrito como "um desses indivíduos que são inteligentes demais para poderem contar com nossa credulidade". Disposto a provar sua teoria, ele tem a ideia de construir uma máquina para viajar no tempo e faz um teste com um protótipo diante de todos. Já em outro jantar, algo inusitado acontece: os homens que aguardavam o Viajante para o banquete se surpreendem ao vê-lo em farrapos e machucado. Nosso protagonista decide contar a experiência incrível que viveu utilizando sua Máquina do Tempo. Daí em diante ele assume a narrativa do livro para nos apresentar tudo o que viu.
    Fonte: Submarino
    O ano é de 802.701 e o mundo parece estar abandonado, com claros sinais de decadência. Não existem governos ou instituições. O Viajante questiona o que teria acontecido aos homens daquele tempo, até se deparar com seres que possuem características humanas. São os Elóis, criaturas de aparência muito bonita, porém frágeis, pequenas e emocionalmente deficientes. O Viajante nota que eles não trabalham, gostam de brincadeiras e de agrados, são rigidamente vegetarianos (não há sinais de animais) e são desprovidos de qualquer preocupação, a não ser a escuridão.
    Ao se dar conta do sumiço da Máquina do Tempo, o cientista resolve procurá-la desesperadamente e tenta se acostumar com a ideia de adaptação à nova realidade. Nesta busca, ele descobre um outro grupo de herdeiros da espécie humana, uma espécie que tinha vida subterrânea contrapondo-se aos seres do "mundo superior". São os Morlocks, de pele muito branca e olhos avermelhados. O Viajante, convicto de que sua invenção está com os Morlocks, resolve adentrar no universo sombrio dessas criaturas e se depara com dois fatos: tudo o que ainda é produzido no mundo está a encargo dos Morlocks. O segundo é que estes saem do subsolo durante a noite para capturar Elóis, servidos de alimento. Eis a explicação para o enorme medo da escuridão que os habitantes da superfície possuem. Mais que isso: o Viajante percebe rapidamente que pode ser presa dos Morlocks. A história do Viajante é de como conseguiu lidar com tantas adversidades e de como conseguiu regressar à sua casa para poder contar esta aventura aos seus convidados.
    A proposta de Wells nesta obra é mostrar sua visão de futuro nada muito otimista. É a ideia do capitalismo levado até às últimas consequências. Por ser um livro pequeno, não prosseguirei com os acontecimentos da narrativa, mas apresentarei algumas informações e o turbilhão de ideias contidas em tão poucas páginas para que possamos compreender a riqueza desta produção.
    Primeiramente, A Máquina do Tempo não é um livro rico em detalhes e as descrições estão em boa medida. Justamente por isso, deixa aberta a lacuna da criação do poderoso invento capaz de se deslocar para o futuro ou para o passado. Wells não se  preocupou em argumentar cientificamente o funcionamento da máquina e chegou a ser criticado por Julio Verne, autor de clássicos como Vinte mil léguas submarinas e A volta ao mundo em 80 dias.
    Umas das primeiras reflexões apresentadas no futuro imaginado por Wells é o declínio da humanidade como uma consequência de todos os esforços empreendidos pelo homem, tendo como eixo o problema da segurança - uma ambição completamente presente tanto no século XIX (quando a obra foi escrita) quanto nos dias de hoje. Na visão do autor, o processo civilizatório, que tornaria a vida mais segura, conduziria ao enfraquecimento humano. Ao mesmo tempo, Wells nos proporciona um cenário no qual parece haver um equilíbrio natural da vida animal e vegetal, justificando a ausência da força física e da violência.
    Não é à toa que a espécie humana encontra-se dividida entre Elóis e Morlocks. A influência marxista que fervilhava no século XIX de uma sociedade dividida em burgueses e proletários é refletida na obra. Uma observação é que na época de H. G. Wells existiam muitas fábricas subterrâneas em Londres, reforçando a semelhança entre a classe operária e os Morlocks. O mais interessante, contudo, é que os Elóis e Morlocks naturalizaram suas condutas e estilos de vida. Nesse sentido, não há "luta classes". Os Elóis, considerados superiores, não exploram os Morlocks e estes não têm a menor pretensão de se revoltarem contra os primeiros. É como se ambos não conhecessem outra forma de viver, porque "sempre foi assim". 
    Outra similaridade que pode ser encontrada reside no fato dos Morlocks não terem o desejo de "crescer na vida". Muitos trabalhadores, como sabemos, exercem o labor apenas para suprirem suas necessidades e pagarem as contas. O modo como os Elóis se portam pode ser comparado às classes mais favorecidas economicamente, que não olham para as camadas inferiores da sociedade, porém se intimidam com atos que podem abalar ou desequilibrar o padrão de vida dos abastados. Como percebemos, resumir Elóis e Morlocks à teoria marxista soa bem simplista. 
    A ideia mais marcante, na minha opinião, é a do suicídio do intelecto no futuro. Os Elóis cientes de seu poder e conforto, os Morlocks com a certeza de suas condições de vida: a sociedade perfeita. E Wells conseguiu exprimir seu pensamento de uma forma tocante: "É uma lei da natureza, de que tantas vezes descuidamos: que a versatilidade intelectual é a nossa compensação por enfrentar as mudanças, os perigos, os problemas. Um animal em perfeita harmonia com seu ambiente é um mecanismo perfeito. A natureza nunca apela para a inteligência senão quando o hábito e o instinto são incapazes de resolver um problema. Não existe inteligência onde não existe mudança. Os únicos animais que demonstram inteligência são aqueles que tiveram de enfrentar uma grande variedade de necessidades e perigos".
    Wells afirmou, quatro décadas mais tarde, o quanto achou tosca a divisão entre Elóis e Morlocks em sua primeira obra. Talvez não tivesse se dado conta da quantidade de elementos e analogias que muitos fariam posteriormente. Recomendo este clássico da literatura mundial pelas questões que são abordadas, mas para os que gostam de leituras mais densas e aprofundadas, A Máquina do Tempo pode deixar a desejar.


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