Para encerrar nossas leituras sobre o carnaval, nada melhor que o olhar antropológico de Roberto DaMatta. Este texto faz parte de uma obra maravilhosa intitulada "O que é o Brasil?", na tentativa de compreender melhor nosso país, nosso povo e nossa cultura.
O carnaval, ou o mundo como teatro e prazer
Todas as sociedades alternam suas vidas entre rotinas e ritos, trabalho e festas, os rituais, as comemorações.
[...] No Brasil, como em muitas outras sociedades, o rotineiro é equacionado ao trabalho ou ao que remete a obrigações e castigos; ao passo que o extraordinário, como o próprio nome indica, evoca o que é fora do comum e deve ser produzido com cumplicidade coletiva.
[...] Na festa, comemos, rimos e vivemos o mito da ausência de hierarquia, poder, dinheiro e esforço físico. Nela, todos se harmonizam por meio de roupas especiais, comidas singulares e, muito especialmente, pela música que congrega e iguala no seu ritmo e na sua melodia.
No caso do Brasil, a maior e mais importante, a mais livre, criativa, irreverente e popular é, sem dúvida, o carnaval. Aliás, nessa festa, a própria definição já perturba, pois que dispensa os elementos da ordem, da esfera política e moral, básicos das outras festas. O carnaval não pode ser sério, senão não seria um carnaval...
Mas qual a receita para o carnaval brasileiro?
Sabemos que o carnaval é definido como "liberdade" e como possibilidade de viver uma ausência fantasiosa e utópica de miséria, trabalho, obrigações, pecado e deveres. Trata-se de um momento em que se pode deixar de viver a vida como fardo e castigo. É, no fundo, a oportunidade de fazer tudo ao contrário: viver e ter uma experiência do mundo excesso - mas como excesso de prazer, de riqueza (ou de "luxo"), de alegria e de riso; de prazer sensual que finalmente fica ao alcance de todos. [...] Com isso, o carnaval inventa um universo social onde a regra é praticar todos os excessos.
Por isso, o carnaval é percebido como algo que vem de fora para dentro da sociedade. Como uma onda irresistível que nos domina, controla e seduz inapelavelmente. [...] Mas o que o carnaval consegue fazer com o Brasil? Que extraordinário é esse que ele tão criativamente inventa?
O carnaval é um ritual de inversão do mundo. [...] No carnaval, trocamos o trabalho que castiga o corpo pelo uso do corpo como instrumento de beleza e prazer. No trabalho, estragamos, submetemos e gastamos o corpo. No carnaval isso também ocorre, mas de modo inverso. Aqui, o corpo é gasto pelo prazer e pela "brincadeira".
[...] O carnaval também promove a troca dos uniformes pelas fantasias. Se o uniforme é uma vestimenta que cria ordem e hierarquia, a fantasia permite o exagero e a troca de posições. E a fantasia é tanto o sonho acordado quanto aquela roupa que realiza a ponte entre o que realmente somos e o que poderíamos ter sido ou o que merecíamos ser. A fantasia liberta, "desconstrói", abre caminho e promove a passagem para outros lugares e espaços sociais. Ela permite o livre trânsito das pessoas por dentro de um espaço social que o mundo cotidiano, com suas leis e preconceitos, torna proibitivo. Ademais, ela torna possível passar de "ninguém" a "alguém"; de marginal do mercado de trabalho a figura mitológica.
É precisamente por estar vivendo uma situação na qual as regras do mundo diário estão temporariamente de cabeça para baixo, que posso ganhar e realmente sentir uma incrível sensação de liberdade. Liberdade fundamental numa sociedade cuja rotina é dominada pelas hierarquias que a todos sujeitam numa escala de direitos e deveres vindos de cima para baixo, dos superiores para os inferiores, dos "elementos" que entram na fila e das "pessoas" que jamais são vistas em público como comuns.
[...] No carnaval, nós, brasileiros, cantamos e, geralmente, podemos fazer o que cantamos. [...] Ali, todos podem exercer o direito de interpretar o mundo do seu jeito e a seu modo. Do mesmo modo, a crítica social mais ácida e a crítica política mais acesa, que pode dar em prisão e censura, são realizadas abertamente, tanto quanto a competição, que todos temem como algo monstruoso, mas que é também aceita em todos os carnavais brasileiros, construídos por meio de inúmeros concursos.
De fato, no carnaval, há competição para tudo: músicas, fantasias, maior capacidade de exibir-se e, naturalmente, a disputa dos blocos e escolas de samba.
[...] Carnaval, pois, é inversão porque é competição numa sociedade marcada pela hierarquia. É movimento numa sociedade que tem horror à mobilidade, sobretudo à mobilidade que conduz à troca de posição social. É exibição numa ordem social marcada pelo falso recato de "quem conhece o seu lugar" - algo sempre usado para o mais forte controlar o mais fraco em todas as situações. É feminino num universo social marcado pelos homens, que controlam tudo o que é externo e jurídico, como os negócios, a religião oficial e a política.
[...] Por tudo isso, o carnaval é a possibilidade utópica de mudar de lugar, de trocar de posição na estrutura social. De realmente inverter o mundo em direção à alegria, à abundância, à liberdade e, sobretudo, à igualdade de todos perante a sociedade. Pena que tudo isso só sirva para revelar o seu justo e exato oposto...
0 comentários:
Postar um comentário